Quando, na trágica estação chuvosa de 1998 e refugiado longe de casa, vi-me pela primeira vez numa situação de ter que aventurar-me no mundo da dramaturgia, não tinha plena consciência do que isso implicaria. Ignorando o facto de o meu país ter sido transformado num palco de (mais uma) guerra, um amigo meu, encenador, intimou-me a fornecer-lhe um texto para uma peça teatral. Não sendo propriamente um convite, não tive como me desenrascar. Reconhecendo todavia a minha incompetência na matéria, esse amigo deu prova de muita generosidade: indicou-me um tema, forneceu algumas referências bibliográficas, sugeriu uns DVDs, apontou um prazo para a entrega do manuscrito e deixou uma mensagem que era suposto ser de conforto: “o teu último romance tem muita teatralidade”.
Quase vinte anos depois a história se repete: um outro amigo, também ele encenador, quis de mim um texto teatral. À semelhança do outro, este encenador também foi generoso. Não me indicou o tema, mas fixou o número de intérpretes. Disse que tinham que ser três, no máximo. Eu quis contestar, alegando que era um simples contador de histórias, que para contar uma história como deve ser não podia haver um número tão reduzido de vozes, que essa restrição corresponderia a colocar um tchintchor na gaiola e esperar que faça uma previsão correcta do tempo, etecetera, etecetera. Mas não houve compaixão. Fiquei com a impressão de que os encenadores são mais manhosos que os actores de palco: revelam maior capacidade de se abstrair da realidade e das circunstâncias.
Mas, mais do que um defeito não será essa a habilidade que faz do teatro, no seu todo, o poderoso veículo de transformação que tem sido ao longo da história da humanidade? Experimentar todo o tipo de obstáculos e nunca ceder; reconhecer as contrariedades e não se conformar; enfrentar a realidade sempre na perspectiva de construir pontes e achar soluções; anunciar os sintomas dos males que afectam a sociedade e instigar o cidadão a procurar a sua cura. No fundo, deve ter sido por isso que M. Cassidy descreveu o teatro africano como “um caminho de passagem para alguma terra prometida – a terra prometida do desenvolvimento”.
Com efeito, se a literatura, nas suas variadas vertentes, possui a magia de impulsionar o processo de (re)criação do imaginário colectivo e, alargando as fronteiras socioculturais dos cidadãos, inculcar e credibilizar a possibilidade do vir a acontecer, o teatro pode, adicionalmente, servir de catalisador de um processo de permanente questionamento do statu quo que pode desembocar na adopção de novas atitudes e comportamentos por parte do espectador/leitor, sustentando a inesgotável luta pela concretização de um mundo melhor, mais consentâneo com as aspirações naturais e legítimas a prosperidade, dignidade e felicidade. Num contexto de crónica crise de valores e de identidade como a que se tem vivido neste país, não será justamente isso que se deve pretender do teatro? Seria dar um carácter útil à arte, como dizia M. Laban.
É evidente que, qualquer que seja a forma como se pretenda abordar o teatro, essa pretensão tem sempre as suas implicações. Assim, numa sociedade caracterizada pela oralidade, não se pode querer que os canais de que se serve o teatro para proporcionar a partilha de emoções, a adopção de novas atitudes e a promoção de outros quotidianos que não necessariamente os vivenciados, ignore a “aptidão” do cidadão comum, que ao fim e ao cabo é o principal destinatário da obra. A oralidade, que nas palavras de J. Vancina deve ser entendida como “uma atitude perante a realidade e não como uma mera falta de habilidade”, apresenta-se assim como a pedra angular de toda a produção teatral, seja ela na sua forma literária ou performativa.
Incorporar a canção, a dança e a música é o que sugere o conceito de teatro total. Sem pretender causar a ira dos puritanos, os tais eurocentristas que assumem que a única forma dramática que conta é aquela em que a palavra tudo diz, o teatro total é, pelo menos no contexto africano, a forma mais elaborada, esteticamente, e, tecnicamente, mais completa da arte dramática. Transcendendo as limitações do verbo, o teatro total subordina a palavra a outros elementos, com os quais é compelida a formar uma unidade harmoniosa, conforme assevera M. Shipper.
Tal como é tradicional na literatura oral, o narrador surge no início de cada acto, lembrando ao espectador/leitor que está perante uma empreitada que é uma espécie de cooperativa, uma missão conjunta em que o autor do texto não é o patrão da obra. Esse acto de partilha de responsabilidade e assunção do estatuto de co-proprietário, de que resulta a diluição do peso do dramaturgo em favor do colectivo de intervenientes, vai de certa forma ao encontro daquilo que S. Bauman referiu na sua teoria de modernidade líquida como fórmula de sucesso.
Nesse contexto, surge como consequência lógica a inviabilidade de qualquer ambição de escrever uma peça de teatro, pelo menos nos termos como ainda o reclamam certos críticos literários, mas sim um texto para teatro. Essa constatação vai para além de um mero jogo de palavras. E a prova está patente neste livro:
– O texto é bastante longo, o suficiente para proporcionar a cada encenador a possibilidade de dele fazer a peça que quiser, livremente colectando as parcelas que mais lhe convier e delas compor um outro enredo;
– As personagens surgem despidas de qualquer pretensão ou ‘veleidade’ artística, deixando a via aberta à improvisação, à criatividade e à manifestação da singularidade de todas e cada uma das intérpretes;
– O narrador é feito órfão, espreitando desconfiado o temperamento dos espectadores no início de cada acto, permanecendo depois ansiosamente à espera de um encenador que não só lhe alimente a eloquência e aprimore a mímica, mas sobretudo lhe empreste a companhia de uma melodia.
E a dança? Sim, onde estão os sedutores movimentos das mestres de dança do ‘Tchon di Nalu’, que marcam de forma indelével o teatro popular guineense? Afinal não se pode conceber um djumbai digno do nome e em nome de três mulheres sem uma batida de djambadon que seja. Impulsionada pela onda de emancipação que aí se anuncia, certamente não tardará que surja uma encenadora que, sem rodeios, convoque as mandjuandades de Pilum e, com elas e sem pudor, faça vibrar este país feito palco até exorcizar todos os males que o afligem, celebrando ao ritmo frenético do balafon ou exuberante do korá, o renascer da crença numa Guiné-Bissau de sabura, orgulho de uma África mais charmosa e revigorada.
E assim, só assim, quando todas as actrizes – as mencionadas no elenco e as muitas mais que cada encenador(a) terá a tarefa de colocar na sua lista de convocados – marcarem presença em palco, poderemos falar de peça de teatro, teatro total, aquele que – nas palavras de M. Shipper – “sem mascarar os erros e fraquezas, dá coragem às pessoas e as insta a maiores resoluções na sua luta pela libertação total”.
Bissalanca, Julho de 2018.
(*) – Nota introdutória ao livro ‘Kangalutas’ , Ku Si Mon Editora, 2018